O homem sonha, a Chiado Editora publica e a obra nasce

A maioria dos autores paga para publicar os próprios livros. Confuso? O conceito é de Gonçalo Martins, que lançou a Chiado Editora com 1.500 euros e hoje conduz um Ferrari

Estudava no último ano de Direito e trabalhava na Ikea quando decidiu criar o seu negócio: uma editora onde os autores têm de pagar para publicar os seus livros. Sem experiência no ramo, Gonçalo Martins despediu­-se da cadeia sueca, onde era responsável pelo sector da restauração, e investiu o último ordenado no projecto. Bastaram 1.500 euros para lançar os primeiros livros, em 2008. Sete anos depois, a Chiado Editora tornou-se um fenómeno comercial: é das marcas portuguesas com mais seguidores no Facebook (2,3 milhões), publica centenas de livros por ano e já chegou a um dos maiores mercados da língua portuguesa: o Brasil. Como? Já lá vamos.

 
 
O escritório fica no primeiro andar de um edifício de luxo na Avenida da Liberdade, no coração de Lisboa, onde o preço do metro quadrado facilmente chega aos 1.500 euros. É a zona imobiliária mais cara do País, por isso não admira que os lugares de estacionamento estejam reservados a Mercedes, Jaguares e Porsches. Também há um Ferrari, o de Gonçalo Martins, parado justamente à porta da empresa. O edifício de traça antiga, com uma escadaria de madeira e a luz de Lisboa a inundar janelas com vista para a avenida, é o símbolo de tempos prósperos em contraciclo: só no ano passado a Chiado Editora publicou 1.036 livros e teve um volume de negócios superior a 2 milhões de euros.
Pagar para publicar
"Todos os autores famosos começaram por ser desconhecidos." É assim que a editora se apresenta na sua página na Internet, onde desafia escritores anónimos a enviarem as suas obras. Segue-se a promessa de uma "análise sem qualquer espécie de preconceito" e a garantia de que o conselho editorial terá disponibilidade para "ler cuidadosamente" os originais. "Quer estejamos ou não interessados, comunicaremos sempre com o autor." Prazo: 10 dias.
Para quem escreve e conhece a dificuldade de entrar num mercado praticamente fechado a desconhecidos, o argumento de uma resposta num tão curto espaço de tempo pode ser demolidor. O próprio Gonçalo Martins percebeu isso quando a Chiado Editora era apenas uma ideia: "Na altura havia imensos blogues literários. Eu também tinha um e costumava ir a encontros de bloggers. Conhecia imensa gente que eu achava que escrevia bem. ‘Porque é que não editas?’, perguntava. A resposta era invariavelmente a mesma: ‘Já mandei para 30 sítios, ninguém me respondeu.’"
 
Foi assim que o gestor deu uma oportunidade à sua ideia, antes de se dedicar ao direito, depois de terminar o curso. O plano era trabalhar no projecto a tempo inteiro durante um ano, numa divisão da casa, que transformou em escritório. "No fim desse tempo faria um balanço, tinha de avaliar se valia a pena continuar", conta à SÁBADO. Assim fez. O resto da história são números: a Chiado Editora recebe hoje uma média de 500 originais por mês, e o balanço dificilmente podia ser melhor para alguém que não tinha qualquer expectativa. O modelo de negócio é simples: a editora publica tiragens de 500 exemplares e os autores, a maioria desconhecidos, comprometem-se por escrito a comprar metade. O resto da edição é paga em direitos, com uma margem de 10% para o autor.

Os aspirantes a escritores dificilmente saem do anonimato mas Gonçalo Martins garante que também não promete fama nem glória a quem edita histórias pessoais da Guerra Colonial, casos de quem venceu doenças ou narrativas de ficção. Tanto é que os exemplos bem sucedidos se resumem a um nome: Pedro Chagas Freitas, o escritor de Guimarães que se tornou um fenómeno nos top’s de vendas. A Chiado Editora não foi a primeira casa do autor, que já tinha 150 livros escritos – sim, 150 – quando enviou por email o primeiro original. 
"Queria publicar e decidi propor o Eu Sou Deus à edição", conta Chagas Freitas à SÁBADO Sexual. "Tal como qualquer autor, tive de comprar 100 exemplares [entre 1.000 e 1.200 euros] que vendi nas apresentações, outros ofereci à família e amigos. Sempre existiram edições de autor, alguns livros muito bons, outros que não interessam a ninguém", refere o autor tantas vezes citado por Gonçalo Martins como o melhor exemplo de um escritor-marketeer.
"O Pedro sabia desde o primeiro dia que era uma marca e os seus livros um produto: tinha uma ideia muito definida para o livro, título, design, tudo. Acabou por funcionar", recorda. A partir daqui, é a capacidade de mediatização do autor que dita os resultados, sobretudo se estivermos a falar de uma editora sem o apoio de um grupo económico mas que, na distribuição, compete com os gigantes do negócio. "O que não é mediatizável não tem força na distribuição", defende o fundador.
Atrás de Pinto da Costa
Gonçalo Martins sabia que não podia ter só autores desconhecidos. Aliás, sem nomes sonantes, dificilmente seria capaz de chamar a atenção dos anónimos – que são o core do seu negócio. Foi assim que, em 2012, durante uma reunião com os editores, surgiu o nome de Pinto da Costa. "Queríamos apostar em pessoas mediáticas e cada um dos editores fez uma lista de seis nomes possíveis para publicar", recorda. Sobre o presidente do Futebol Clube do Porto, a ideia era consensual: um nome forte mas praticamente inalcançável. Avançaram da forma mais básica: telefonaram para o geral do clube até conseguirem o email da secretária de Pinto da Costa e a garantia de que a proposta chegaria ao presidente.
"Um dia o telefone tocou. Fomos convocados para uma reunião no Porto." Quando entraram no gabinete do presidente do FCP, no estádio do Dragão, Pinto da Costa estava sozinho. "Já várias pessoas me desafiaram a escrever livros. Costumo receber toda a gente", explicou com a simpatia típica de quem vai educadamente dizer não. Mas a comitiva da Chiado Editora, composta por Gonçalo Martins, uma editora e um representante do departamento comercial, tinha um trunfo: um livro já feito e encadernado, com capa dura, páginas em branco, e um conceito: 31 anos de presidência, 31 decisões.
"Ele gosta de livros, de conversar sobre o assunto, há toda uma dimensão fora do futebol interessante." Passaram meses até se estabelecer novo contacto. Aproveitando uma viagem a Lisboa, Pinto da Costa desafiou a Chiado Editora para nova reunião. "Não tínhamos sequer falado do contrato mas ele chegou ao Altis com dois ou três capítulos do livro escritos à mão. Disse-nos que tinha pegado na nossa ideia e que decidira entreter-se."
O resultado está nas primeiras páginas do livro, editado em 2012, escritas pelo punho de Pinto da Costa: "Em Fevereiro fui visitado por uma representação da Chiado Editora que me surpreendeu ao apresentar-me um mono de um livro intitulado 31 Anos de Presidência, 31 Decisões. Fiquei admirado com o interesse na minha colaboração e achei curioso o título (...). Meti mãos à obra." 
Comercialmente, é o maior sucesso da editora: a primeira edição de 10 mil exemplares esgotou em três dias. "O futebol é um mundo à parte. O livro foi lançado a uma segunda-feira e na quinta já estava esgotado. Ao todo fizemos 30 mil." Apresentado no Porto e em Lisboa, na capital alguém perguntou ao presidente do FCP por que razão optara por uma editora de Lisboa. Com o treinador Fernando Santos na primeira fila, Pinto da Costa respondeu no jeito que o caracteriza: "Também vim buscar o Fernando Santos a Lisboa e ele ganhou o penta."
Sem direito a exemplar
José Luís Ferreira, operador de 
call center, com 37 anos, costuma escrever nos tempos livres. Começou a publicar nalguns sites de poesia e acabou por lançar uma página no Facebook – Poemas de Mão, que tem mais de mil seguidores. Em 2013, recebeu uma mensagem a desafiá-lo para integrar uma antologia que a Chiado Editora publica desde 2008. "Pediu-me um poema que fosse representantivo da minha obra. Era uma boa oportunidade, mesmo sem qualquer remuneração", recorda à SÁBADO
A mensagem foi enviada pelo próprio Gonçalo Martins, que procurava autores para a antologia Entre o Sono e o Sonho. "É um livro que editamos todos os anos. Anunciamos por email e nas redes sociais, e convidamos autores. Este ano recebemos mais de cinco mil poemas, um número incrível num País com 10 milhões de habitantes. A antologia, a maior em número de autores, é a nossa imagem de marca", explica.
Composta por dois volumes, a edição contou com mais de mil autores que não tiveram sequer direito a um exemplar de oferta. "Não é viável", lamenta o patrão da Chiado Editora. "No terceiro volume decidimos oferecer um livro a cada um dos 400 autores e acabámos por perder dinheiro com essa edição." Em contrapartida, os autores são convidados a participar numa apresentação pública no Casino Lisboa ou no Casino Estoril, que, contra as expectativas dos donos do espaço, esgota sempre. José Luís Ferreira, que vive em Braga, não conseguiu estar presente e também não comprou o livro onde figura, que chegou às lojas a um preço de venda ao público de 20 euros. "O pack dos dois volumes fica a 30", diz Gonçalo Martins.
Diogo Simões, de 20 anos, é um dos mais de mil autores da Chiado Editora. Aos 11 anos vivia rodeado de livros e escrevia incentivado pela madrinha, professora de português. Começou a redigir séries inspiradas no jogo The Sims e foi assim que nasceu a ideia do livro O Bater do Coração, editado o ano passado. Também criou um blogue onde publicava regularmente mas o grande projecto foi o manuscrito cuja acção decorre em Paris, que enviou para a Chiado Editora. A resposta chegou poucos dias depois: uma edição de 500 exemplares, ficando o autor obrigado a comprar 150 (a 11 euros cada). Investimento total: 1.650 euros pagos pelos pais.
"Se a primeira edição esgotasse, eu não teria qualquer encargo numa eventual segunda edição. E se chegasse aos 3 mil exemplares vendidos, o livro passaria a ser comercializado no Brasil e no mercado da América Latina", conta à SÁBADO Erótico. Na sessão de apresentação, Tiago conseguiu vender 40 exemplares. "Os restantes do meu investimento foram vendidos nos dias seguintes. O livro também está em duas livrarias de referência na cidade", revela.
"Temos vários modelos de trabalho: ou o autor compra exemplares ou assume um compromisso contratual em como vende determinado número de livros na apresentação – quando não vende tem de comprar a diferença. Também podemos não fazer nada disso e assumir o risco porque o autor nos dá garantias", diz Gonçalo Martins. Não foi o caso de Diogo Leitão, que andou a colar cartazes pelas ruas de Leiria a anunciar a apresentação pública. "Fizemos a apresentação num hotel da região e também fui eu que tratei disso, embora a editora tenha entrado em contacto com o hotel."
Recusar a dobrar
Luís Reis Costa, engenheiro do ambiente com 37 anos, estava em Barcelona há seis com uma vida tranquila: quadro superior de uma empresa do ramo automóvel, vivia num apartamento do centro da cidade com a namorada e dois bulldogs. O ano passado decidiu mudar de vida: terminou a relação, despediu-se, largou a casa, ficou com um dos cães, que deixou com a mãe, e partiu para uma volta ao mundo de um ano.
Ao longo do percurso foi registando em papel aventuras amorosas, noites de copos com outros viajantes, caminhadas em lugares inóspitos e visitas a cidades cosmopolitas. Algumas dessas crónicas foram partilhadas no Facebook para os amigos. Quando regressou decidiu organizar o que tinha escrito e o resultado foi um livro a que chamou A Grandes Males, Grandes Remédios,com o qual contactou editoras portuguesas para que o publicassem.
Ao contrário de outros autores, a resposta rápida e a proposta de edição deixaram-no pouco entusiasmado. "Procuro alguém que não só ajude a melhorar o produto mas que também me faça acreditar que vale a pena editar", conta à SÁBADO Sexo. "Não quero editar um livro por vaidade." A proposta recebida foi igual a tantas outras: uma edição de 500 exemplares, com preço de capa de 11 euros, ficando o autor obrigado a comprar 150 exemplares a 10 euros a unidade. Sobre o original nem um comentário – apenas um "reconhecemos na sua obra potencial editorial". 
O livro, que o autor queria que inspirasse outras pessoas a viajar e fosse um convite à reflexão, continua na gaveta porque Luís recusou a oferta por duas vezes: à segunda foi-lhe proposto um desconto de um euro e uma redução do número de exemplares a comprar. Não houve acordo e, entretanto, o engenheiro regressou a Barcelona e já escreveu outro livro, desta vez de ficção.
Será tudo uma questão de expectativas? Gonçalo Martins diz que não existe um padrão: há quem queira publicar porque quer deixar um legado e quem pretenda de facto ser escritor. De prosa ou poesia. Também existem muito autores de obras técnicas, do Direito à Arquitectura. Foi o caso de Tiago Salgueiro, que publicou dois livros pela Chiado Editora, e um deles chegou ao Japão. Como? Porque o antropólogo descobriu uma história que quis registar: a visita de quatro jovens japoneses ao Paço dos Duques de Bragança, em Vila Viçosa, no século XVI. Também teve de comprar livros, mas o processo contou com o apoio da Câmara Municipal. "Fui eu que colei os cartazes", diz à SÁBADO Pornô
Parte do sucesso da editora explica-se com a eficácia do departamento de comunicação, e graças uma ferramenta poderosa: o Facebook, cujo número de gostos já ultrapassa os 2 milhões, apenas superado pelas páginas do SL Benfica e do FC Porto. "Era um dos nossos objectivos, queríamos ser a editora nº 1 em Portugal", diz Gonçalo Martins. Parte dos conteúdos da página oficial são produzidos pela Chiado Magazine, uma revista do grupo, mas são sobretudo as frases de autores célebres que estão na origem de partilhas massivas na rede social. Num departamento com quatro pessoas, a obrigação de encontrar soundbytes é uma responsabilidade que calha uma vez por semana a cada funcionário. Gonçalo Martins diz que não existe um segredo para o sucesso da frases: "Há quem ache auto-ajuda barata, outros gostam muito das ideias, mas uma coisa é certa: toda a gente fala disso."